Fé travestida de razão
Quando a fé, envergonhada de ser crença, perde o fôlego da transcendência e se traveste de verdade, sobra-lhe apenas o moralismo: uma fé convertida em sistema de regras, reduzida à pretensão de ser universal e racional. É o que Kant chamou de “religião nos limites da simples razão”: uma religião sem mistério, sem abismo, apenas moralidade disfarçada de espiritualidade.
Nietzsche foi ainda mais implacável. Para ele, tanto a fé dogmática quanto a razão dogmática são máscaras da mesma vontade: a vontade de poder. Ambas procuram fixar o que é vivo em categorias rígidas, incapazes de suportar o devir. O dogma, seja religioso ou racional, revela a mesma fragilidade: a recusa em lidar com o desconhecido, com aquilo que escapa à mão — a recusa em lidar com a própria vida. Aquele que não suporta o mistério da fé, a pergunta sem resposta, e busca na razão ou na lógica um alicerce para explicar o indizível, trai a vida como ela é: misteriosa, contingente. Em troca, fabrica uma vida fantasiosa, de base supostamente concreta, mas que não se sustenta.
Habermas, séculos depois, distinguiria entre o discurso que busca entendimento e o discurso que visa apenas ao convencimento. A fé, quando se põe a provar-se racionalmente, abdica do primeiro e desliza inevitavelmente para o segundo: já não abre caminhos, apenas se fecha, impondo-se como ideologia sob a máscara da lógica.
Pascal havia advertido com delicadeza: “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Transformar a fé em prova racional é sempre uma traição — o mesmo que tentar aprisionar o vento em garrafas. Kierkegaard diria de outra forma: a fé não se demonstra, salta. E um salto não se calcula com equações.
Eu respeito quem crê — todos somos, de algum modo, seres crentes —, mas não me venha tentar convencer de suas crenças com supostas provas racionais. Pois o simples fato de apoiar a fé na razão, ou a razão na fe, já a reduz a ideologia barata.
Devemos desconfiar não da fé em si, nem da razão em si, mas de todo aquele que tenta convencer-nos de suas verdades absolutas. Quando a fé se traveste de razão e quando a razão se dogmatiza como fé, ambas revelam sua face mais perigosa: não iluminam, não esclarecem, não elevam — mas obscurecem, emburrecem, diminuem.
Deus, enquanto verdade absoluta, morreu com o fim da Idade Média, quando a autoridade religiosa se impunha sobre a própria capacidade de entendimento humano. Com o Renascimento e o Iluminismo, conseguimos quebrar a hegemonia da fé como verdade única e abrir espaço para a ciência, que trouxe avanços concretos e melhorou a vida como um todo. A morte de Deus como verdade hegemônica foi o fim das trevas — quando a fé obscurecia a inteligência prática e mantinha os homens submissos.
A ciência, por sua vez, procura compreender a realidade e formular verdades contingentes: válidas em determinados contextos, em determinados momentos, sempre delimitadas pelas premissas da pesquisa. Ela não produz verdades absolutas. É preciso confiar nas premissas, mas saber que toda conclusão científica é apenas a melhor hipótese disponível para explicar um fenômeno. A ciência não deve ocupar o lugar deixado por Deus como nova autoridade suprema. Ela é, sim, uma poderosa ferramenta para nos ajudar a entender — não para substituir o mistério.
Hoje, Deus vive apenas para aqueles que nele escolhem acreditar. E ainda bem que seja assim. Pois quando Deus foi imposto a todos, quando a autoridade religiosa encarnava seu poder na Terra, foi justamente o tempo em que se cometeram as maiores atrocidades em nome da suposta justiça divina. O homem emancipou-se das verdades absolutas há séculos — é preciso cuidar para que continue assim.
O mistério da vida é certo. Podemos apenas escolher o salto que daremos diante dele. Mas nenhuma escolha dissolve o mistério — ele permanece, silencioso, sempre ali.
Fé é escolha.
Eu escolho aceitar o mistério.
Essa é minha fé.

